Curículo, cultura afro e arte educação



CURRÍCULO, CULTURA AFRO E ARTE-EDUCAÇÃO

Autora:Nelma Barbosa
O currículo é um espaço de poder. Em função da dimensão ideológica, uns conhecimentos são considerados importantes e válidos e outros, não. A escola é “oficialmente” o único espaço de educação e é dentro dela que o conhecimento formal tem sido repassado e as relações de poder se reproduzido.
O formato do currículo escolar brasileiro tem contribuído pouco para a formação humanizadora e autônoma de seu povo. A padronização e separação dos “conteúdos” refletem o esforço do poder hegemônico de nossa sociedade em afirmar sua força com o estabelecimento de verdades sobre outros grupos ditos “incultos, carentes , incapazes”.
Ainda seguimos o modelo da educação bancária, no qual os conhecimentos são depositados um a um no aluno. Este aluno assiste as disciplinas “passarem”. Na hierarquia das disciplinas escolares, a Educação Física e Educação Artística são as menos prestigiadas. Os conhecimentos “adquiridos” ( divisões do território, datas históricas, cálculo, leitura) são considerados mais importantes do que aqueles “sentidos” .
A diversidade historicamente tem sido representada como algo exótico, folclórico. A abordagem superficial e distante do cotidiano escolar reforça estereótipos, naturaliza os problemas raciais e sociais, justificando-os por meio de recursos da psicologia (por exemplo: índio é preguiçoso, negro é violento, branco nasce para comandar...). Isso tem mudado com ações educativas dos movimentos sociais e a reivindicação de uma nova postura da escola em relação aos grupos étnicos-raciais que compõem o povo brasileiro.
Neste sentido, as grandes novidades são as inclusões da Cultura Afro no currículo e o tema transversal (que perpassa as matérias) chamado Pluralidade Cultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino fundamental. Ele “apresenta uma noção afirmativa da diversidade cultural , como riqueza humana a ser explorada , fonte de conhecimento e denso material a ser usado nas escolas em praticamente todas as disciplinas” ( LIMA; 2002) .
Essas áreas se relacionam intensamente com a Arte. Pois, como área do conhecimento, “a Arte tem valor em si mesma enquanto simbolização de sentimentos, enquanto sistema simbólico que permite o conhecimento de regiões humanas não alcançáveis, por meio da razão e do pensamento lógico. Na arte-educação o que se busca é despertar a consciência dos indivíduos para o valor que a arte possui em si própria, de par com a consciência dessa dimensão humana tão misteriosa e rica, o sentimento , de onde, em última análise, brota o sentido da vida” . ( DUARTE JÚNIOR; 1988 )
A Arte na escola trabalha a formação integral do ser humano. Uma de suas funções sociais é a interação com o outro, com o mundo, a socialização. Potencializa o lado cognitivo e o domínio afetivo pelo estímulo da capacidade de respostas diante dos desafios, sensibilização e a atenção. É a arte o veículo fundamental para traduzir e facilitar o momento instituinte do sujeito. É a educação para a compreensão sensível de fatores culturais e sociais que nos levam a atitudes e pensamentos inseridos em um determinado tempo/espaço. Como esta área de conhecimento dialogará a partir de agora nesse contexto de mudanças curriculares?

As matrizes

“As práticas racistas constróem-se e são reinteradamente repetidas a partir de preconceitos, frutos da ignorância que grupos étnicos tidos como superiores têm acerca das organizações e modo de vida daqueles considerados inferiores.[1]
Fruto de uma elite brasileira que sempre se quis européia e branca, o currículo escolar brasileiro tem apresentado o “outro” ou o não - branco europeu como não – humanos, não – sujeitos. Os outros são seres inferiores por natureza ( atrasados intelectualmente , vivem em tribos ou aldeias), sem produção artística e intelectual ( tocam batuques barulhentos, pintam corpos, andam nus... ), só sabem trabalhar em serviços pesados, que demandam grande esforço físico ( nas lavouras, por exemplo), são dóceis e servis ( não tem consciência da situação precária em que vivem e não mudam porque não querem ou não sabem como) e portanto, precisam ser “ libertos” pela inteligência e superioridade brancas.
O conhecimento específico das modalidades de Arte das matrizes culturais brasileiras ( branca européia, negra e índia) é articulado com grau de compreensão do espectador quanto à linguagem , conteúdo e expressão do criador. A difusão da arte de origem européia no Brasil tem ocorrido dentro de um contexto histórico – social discriminatório e opressor desse grupo sobre os demais, tornando invisível qualquer outra expressão artístico-cultural. A mídia também estimula a representação auto - destrutiva desses povos: a cópia dos brancos.
A música, a dança, as tradições, as festas, os ritos , as religiões brasileiras receberam contribuições de inúmeros povos . A maneira como estas tem sido expostas e intermediadas tem criado modelos de representação pejorativa da maioria brasileira, desvalorizando sua riqueza cultural, mantendo-se bem longe da perspectiva da afirmação multiculturalista. O “ideal de branqueamento” tem feito desaparecer a memória e a identidade de diversos grupos, enfraquecendo-os na luta pela sobrevivência, reconhecimento de suas diferenças, direitos e importância na conformação da identidade nacional.
Os afro - descentes e os indígenas tem buscado, através de pressões políticas e culturais, a inserção de seus valores no currículo escolar, reconhecendo a Educação formal como campo de disputa.
Os indígenas exigem uma educação que respeite seus costumes, sua língua, sua visão de mundo. Eles estão em mais de 220 etnias distribuídas por quase todos os Estados e contam com um movimento organizado, forte e atuante. O Movimento Índio – Descendente ( MID) e a UNID- União Nacional de Índios Descendentes são exemplos de intensa articulação com os poderes públicos para formulação de políticas educacionais que valorizem as diferenças culturais brasileiras.
O movimento negro tem pressionado e realizado ações que culminaram neste momento com a Lei nº 10.639 que inclui a Cultura Afro nos currículos de ensino fundamental e médio. Sancionada em 09 de janeiro de 2003 pelo presidente da República, torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira. Essa última parte estará presente em todo o currículo, especialmente na Literatura, História e, principalmente, Educação Artística.

Movimento e estética

Os movimentos sociais trouxeram para a educação a denúncia do racismo e discriminação, da visão etnocêntrica da cultura, da desconsideração de que existem diferentes identidades, levando-nos a repensar a estrutura da escola. O 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura foi ressignificado como Dia Nacional de luta Contra o Racismo e o 20 de novembro trouxe a figura guerreira Zumbi dos Palmares para marcar o Dia da Consciência Negra. Tais datas estão no calendário escolar.
O processo de resistência negra não é algo novo no país. Os negros que vieram de países, com línguas e aldeias diferentes, unificaram-se nas lavouras, contra a escravidão.Houve muitas revoltas durante o sistema , fazendo com que o regime escravista se mantivesse sempre alerta, consolidando o escravo como agente político. Quilombos, irmandades, clubes abolicionistas, conservação de costumes lúdicos-religiosos, imprensa anti-racista, comunidades de terreiro, caixas de alforria e, mais recentemente entidades carnavalescas e centros de pesquisa constituem formas de resistência dos afro - brasileiros .
A Bahia é o Estado com a maior população negra. E de lá surgiram ações pedagógicas bastante significativas para as lutas dos afro - descendentes. Esses projetos foram fundamentados na relação entre saber, poder e identidade, considerando a estética e a arte negras como base do trabalho com questões sociais e raciais. Tal atitude demonstra a seriedade na relação com o conhecimento “sentido / percebido”.
A estética nasceu falando sobre o corpo (percepções, sensações).O corpo é um sensível experimentador, antes do pensar. A tomada de consciência desse corpo ameaça o sistema político ( reforça utopias, media o mundo) , redireciona a racionalidade ( criação de padrões novos a medida em que são feitos experimentos) e transita por todas as áreas do conhecimento. Portanto, todo negro tem consciência negra, ele sabe o que é ser negro. Mas pode não ter a consciência política da questão do afro-brasileiro. Foi esse, então, o caminho escolhido para as ações pedagógicas do Bloco Afro Ilê Aiyê, existente há 27 anos em Salvador. Nele só desfilam negros e sua ancestralidade é revivida, estimulada e re- criada esteticamente .
A entidade desenvolve o Projeto de Extensão Pedagógica que visa “introduzir nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio a cultura negra, a partir da música, do trançado dos cabelos e da indumentária produzida pelo bloco afro Ilê Aiyê” .(SILVA, 2001; p.18). Mantém a Escola de Percussão Banda Erê trabalhando, além da musicalidade, a oralização da cultura ancestral, educação corporal, a mulher brasileira, ecologia, teatro, formas de espiritualidade negra , preconceito e discriminação racial .
O movimento negro baiano conseguiu ainda , em 1983, a implantação da disciplina optativa Introdução aos Estudos Africanos na rede pública estadual (ensino fundamental e médio). Na ementa previa-se o estudo da “organização política da África pré-colonial, formação histórica e geográfica dos povos africanos antes da divisão da África, como se transmitia a educação através da linguagem oral, a formação dos tradicionalistas e dos griôs, responsáveis pela conservação da história dos povos entre outros assuntos ( SILVA, 2001;p.17). Foi praticada em oitos unidades escolares do Estado, estimulou a criação de um curso de especialização em Antropologia, História e Geografia em convênio entre a Universidade Federal da Bahia e Secretaria Estadual de Educação e Cultura. A experiência não teve segmento com a mudança de governo estadual.
A Arte educa
“ Na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, , em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.”[2]
A Arte educa pelo imaginar, descobrir possibilidades, conhecer os sentimentos ( de acordo com a cultura de cada grupo) , exprimir os mesmos em outras formas, ter projetos de transformação, pelo ultrapassar barreiras de comunicação com outros povos,vivenciar o mundo integralmente em cada época, vivenciar o que não é permitido na vida cotidiana. A arte cria sentido para a vida nas crianças através do processo das descobertas de percepções, experiências, sentimentos, integração, auto-expressão. Desenvolve ainda a capacidade de discriminar, escolher, de ter a crítica, de sentir o próprio eu em contato com obras de outros artistas.
A identificação, assim como o entendimento das manifestações culturais locais e regionais, abrem a possibilidade de estudos e experimentos sobre aspectos artísticos teóricos e práticos. A estética desenvolvida pelos grupos humanos específicos é refletida na arte e não está dissociada da sua realidade social e histórica.
O diálogo da escola com o modo de vida dos seus alunos permitirá a vivência e potencialização de outros contextos de aprendizagem. As manifestações dramático- religiosas, a música, capoeira as organizações carnavalescas ( afoxés, batucadas e blocos afro) , entre outros , são alguns elementos mediadores da reflexão sobre a identidade cultural do negro. O aprofundamento em uma ou mais linguagens artísticas pela ótica dessas expressões fará com que o arte-educando realize, questione, aprecie e debata, elabore e colabore com sua realidade.
A multirreferencialidade precisa ser praticada com a convivência com as diferenças, a busca de novos espaços de interação e afirmação das identidades. O contato com outras fontes de informação e saberes traz questionamentos sobre as certezas, enriquecendo o contexto do indivíduo, a vida. É nesse momento de interação que se dá a criação de entre-lugares : onde a subjetividade humana procura a e materialização de um mundo mais tolerante , justo e plural.

Formação de arte-educadores

Os cursos de formação de professores , onde se incluem os arte-educadores, ainda não avançaram no sentido de estudar a história ou expressões artísticas africanas e indígenas. A possibilidade da pesquisa no campo sobre essas questões durante a graduação, indicará caminhos para a preparação de docentes críticos, criativos e solidários. O material pesquisado poderá compor uma forma nova de material didático.
O professor deve se re-conhecer nesse espaço e opinar. Tem que decidir se é melhor inserir conteúdos afro-brasileiros nas suas práticas de ensino, ampliar sua própria leitura do mundo ou ministrar uma nova disciplina. Mas, sobretudo, lembrar que admitir a existência e identificar as práticas racistas no cotidiano escolar são passos para a prevenção da discriminação.
O educador precisa ter a percepção dos diversos modos de vida de seus alunos e respeitá-los . Para o professor de Arte, cabe ainda a missão de desmistificar o papel de atividade supérflua que a disciplina tem ocupado na escola , esclarecendo o valor de sua profissão e área de conhecimento. A Arte não deve ser limitada a ilustrar temas discussão, mas pode ser um meio de re-conhecimento e reflexão da identidade nacional. Utilizando-se de toda a sua extensão educativa , a Arte estará em prol da formação de um sujeito livre.
A escola, portanto, deve entender e receber a realidade local (incluindo a vida dos estudantes) como possibilidade de espaço de formação , aproveitando referências múltiplas, estimulando a vontade de saber mais , a identidade e a autonomia.Nesse caminho, o ato da repetição dará lugar ao ato da criação e re-criação de novos territórios para o conhecimento e ação do sujeito.
Se considerarmos os conhecimentos e saberes dos afrodescendentes em sala de aula perceberemos o quanto a cultura afro-brasileira está presente. Ouviremos vozes silenciadas há séculos e numa nova temporalidade criaremos outros caminhos para a Educação.
Referências:
BOAVENTURA, Edivaldo. O ensino da cultura afro – brasileira. Jornal A TARDE, 16.01.2003
BOAVENTURA, Edivaldo. A educação indígena. Jornal A TARDE, 23.01.2003
DUARTE JÚNIOR.Fundamentos estéticos da Educação.Campinas: Papirus, 1988
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 7-28
FUSARI, Maria F. R. e FERRAZ, Maria Heloísa. Arte na educação escolar.São Paulo:Cortez,1993
GOMES, Nilma Lino. A contribuição do negro para o pensamento educacional brasileiro In SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves ( org) . O pensamento negro em Educação no Brasil: expressões do movimento negro.p.27-28
GUIMARÃES, Elias Lins. A ação educativa do Ilê Aiyê: reafirmação de compromissos, restabelecimento de princípios. Salvador. Tese de Doutorado em Educação pela Faculdade de Educação/ UFBA, 2001
LIMA, Terezinha Bazé de. Pluralidade Cultural e combate à discriminação racial na escola. In Revista Palmares em Ação. Ano I, n.2., p. 30-33, Fundação Cultural Palmares , 2002
PORCHER, Luís (org). Educação Artística: luxo ou necessidade? São Paulo: Summus,
1982
SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo In SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 1995 , p.159-177
SERPA, Luiz Felippe P. Pedagogia da diferença. 2000
SILVA, Ana Célia da. As transformações da representação social do negro no livro didático e seus determinantes . Tese de Doutorado PPGE/UFBA Salvador: 2001
SILVA, Ana Célia da.Movimento negro e ensino nas escolas: experiências da Bahia In SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves ( org) . O pensamento negro em Educação no Brasil: expressões do movimento negro.p.31-39
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Prática do racismo e formação de professores in DAYRELL, Juarez. Múltiplos olhares sobre educação e cultura: Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996 p.168
SILVA, Petronilha B. G. e PINTO, Regina P. (orgs .).Negro e Educação: presença do negro no sistema educacional brasileiro. Seção Educativa/ ANPED
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade - Uma introdução às teorias do currículo Belo Horizonte: Autêntica, 2002


[1] SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalvez. Prática do racismo e formação de professores in DAYRELL, Juarez. Múltiplos olhares sobre educação e cultura: Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996 p.168
[2] FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. p. 284
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Programa de Pós - Graduação em Educação
Edc 575 – Arte e Educação / 2002.2
Nelma Cristina Silva Barbosa

CURRÍCULO, CULTURA AFRO E ARTE-EDUCAÇÃO

O currículo é um espaço de poder. Em função da dimensão ideológica, uns conhecimentos são considerados importantes e válidos e outros, não. A escola é “oficialmente” o único espaço de educação e é dentro dela que o conhecimento formal tem sido repassado e as relações de poder se reproduzido.
O formato do currículo escolar brasileiro tem contribuído pouco para a formação humanizadora e autônoma de seu povo. A padronização e separação dos “conteúdos” refletem o esforço do poder hegemônico de nossa sociedade em afirmar sua força com o estabelecimento de verdades sobre outros grupos ditos “incultos, carentes , incapazes”.
Ainda seguimos o modelo da educação bancária, no qual os conhecimentos são depositados um a um no aluno. Este aluno assiste as disciplinas “passarem”. Na hierarquia das disciplinas escolares, a Educação Física e Educação Artística são as menos prestigiadas. Os conhecimentos “adquiridos” ( divisões do território, datas históricas, cálculo, leitura) são considerados mais importantes do que aqueles “sentidos” .
A diversidade historicamente tem sido representada como algo exótico, folclórico. A abordagem superficial e distante do cotidiano escolar reforça estereótipos, naturaliza os problemas raciais e sociais, justificando-os por meio de recursos da psicologia (por exemplo: índio é preguiçoso, negro é violento, branco nasce para comandar...). Isso tem mudado com ações educativas dos movimentos sociais e a reivindicação de uma nova postura da escola em relação aos grupos étnicos-raciais que compõem o povo brasileiro.
Neste sentido, as grandes novidades são as inclusões da Cultura Afro no currículo e o tema transversal (que perpassa as matérias) chamado Pluralidade Cultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino fundamental. Ele “apresenta uma noção afirmativa da diversidade cultural , como riqueza humana a ser explorada , fonte de conhecimento e denso material a ser usado nas escolas em praticamente todas as disciplinas” ( LIMA; 2002) .
Essas áreas se relacionam intensamente com a Arte. Pois, como área do conhecimento, “a Arte tem valor em si mesma enquanto simbolização de sentimentos, enquanto sistema simbólico que permite o conhecimento de regiões humanas não alcançáveis, por meio da razão e do pensamento lógico. Na arte-educação o que se busca é despertar a consciência dos indivíduos para o valor que a arte possui em si própria, de par com a consciência dessa dimensão humana tão misteriosa e rica, o sentimento , de onde, em última análise, brota o sentido da vida” . ( DUARTE JÚNIOR; 1988 )
A Arte na escola trabalha a formação integral do ser humano. Uma de suas funções sociais é a interação com o outro, com o mundo, a socialização. Potencializa o lado cognitivo e o domínio afetivo pelo estímulo da capacidade de respostas diante dos desafios, sensibilização e a atenção. É a arte o veículo fundamental para traduzir e facilitar o momento instituinte do sujeito. É a educação para a compreensão sensível de fatores culturais e sociais que nos levam a atitudes e pensamentos inseridos em um determinado tempo/espaço. Como esta área de conhecimento dialogará a partir de agora nesse contexto de mudanças curriculares?

As matrizes

“As práticas racistas constróem-se e são reinteradamente repetidas a partir de preconceitos, frutos da ignorância que grupos étnicos tidos como superiores têm acerca das organizações e modo de vida daqueles considerados inferiores.[1]
Fruto de uma elite brasileira que sempre se quis européia e branca, o currículo escolar brasileiro tem apresentado o “outro” ou o não - branco europeu como não – humanos, não – sujeitos. Os outros são seres inferiores por natureza ( atrasados intelectualmente , vivem em tribos ou aldeias), sem produção artística e intelectual ( tocam batuques barulhentos, pintam corpos, andam nus... ), só sabem trabalhar em serviços pesados, que demandam grande esforço físico ( nas lavouras, por exemplo), são dóceis e servis ( não tem consciência da situação precária em que vivem e não mudam porque não querem ou não sabem como) e portanto, precisam ser “ libertos” pela inteligência e superioridade brancas.
O conhecimento específico das modalidades de Arte das matrizes culturais brasileiras ( branca européia, negra e índia) é articulado com grau de compreensão do espectador quanto à linguagem , conteúdo e expressão do criador. A difusão da arte de origem européia no Brasil tem ocorrido dentro de um contexto histórico – social discriminatório e opressor desse grupo sobre os demais, tornando invisível qualquer outra expressão artístico-cultural. A mídia também estimula a representação auto - destrutiva desses povos: a cópia dos brancos.
A música, a dança, as tradições, as festas, os ritos , as religiões brasileiras receberam contribuições de inúmeros povos . A maneira como estas tem sido expostas e intermediadas tem criado modelos de representação pejorativa da maioria brasileira, desvalorizando sua riqueza cultural, mantendo-se bem longe da perspectiva da afirmação multiculturalista. O “ideal de branqueamento” tem feito desaparecer a memória e a identidade de diversos grupos, enfraquecendo-os na luta pela sobrevivência, reconhecimento de suas diferenças, direitos e importância na conformação da identidade nacional.
Os afro - descentes e os indígenas tem buscado, através de pressões políticas e culturais, a inserção de seus valores no currículo escolar, reconhecendo a Educação formal como campo de disputa.
Os indígenas exigem uma educação que respeite seus costumes, sua língua, sua visão de mundo. Eles estão em mais de 220 etnias distribuídas por quase todos os Estados e contam com um movimento organizado, forte e atuante. O Movimento Índio – Descendente ( MID) e a UNID- União Nacional de Índios Descendentes são exemplos de intensa articulação com os poderes públicos para formulação de políticas educacionais que valorizem as diferenças culturais brasileiras.
O movimento negro tem pressionado e realizado ações que culminaram neste momento com a Lei nº 10.639 que inclui a Cultura Afro nos currículos de ensino fundamental e médio. Sancionada em 09 de janeiro de 2003 pelo presidente da República, torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira. Essa última parte estará presente em todo o currículo, especialmente na Literatura, História e, principalmente, Educação Artística.

Movimento e estética

Os movimentos sociais trouxeram para a educação a denúncia do racismo e discriminação, da visão etnocêntrica da cultura, da desconsideração de que existem diferentes identidades, levando-nos a repensar a estrutura da escola. O 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura foi ressignificado como Dia Nacional de luta Contra o Racismo e o 20 de novembro trouxe a figura guerreira Zumbi dos Palmares para marcar o Dia da Consciência Negra. Tais datas estão no calendário escolar.
O processo de resistência negra não é algo novo no país. Os negros que vieram de países, com línguas e aldeias diferentes, unificaram-se nas lavouras, contra a escravidão.Houve muitas revoltas durante o sistema , fazendo com que o regime escravista se mantivesse sempre alerta, consolidando o escravo como agente político. Quilombos, irmandades, clubes abolicionistas, conservação de costumes lúdicos-religiosos, imprensa anti-racista, comunidades de terreiro, caixas de alforria e, mais recentemente entidades carnavalescas e centros de pesquisa constituem formas de resistência dos afro - brasileiros .
A Bahia é o Estado com a maior população negra. E de lá surgiram ações pedagógicas bastante significativas para as lutas dos afro - descendentes. Esses projetos foram fundamentados na relação entre saber, poder e identidade, considerando a estética e a arte negras como base do trabalho com questões sociais e raciais. Tal atitude demonstra a seriedade na relação com o conhecimento “sentido / percebido”.
A estética nasceu falando sobre o corpo (percepções, sensações).O corpo é um sensível experimentador, antes do pensar. A tomada de consciência desse corpo ameaça o sistema político ( reforça utopias, media o mundo) , redireciona a racionalidade ( criação de padrões novos a medida em que são feitos experimentos) e transita por todas as áreas do conhecimento. Portanto, todo negro tem consciência negra, ele sabe o que é ser negro. Mas pode não ter a consciência política da questão do afro-brasileiro. Foi esse, então, o caminho escolhido para as ações pedagógicas do Bloco Afro Ilê Aiyê, existente há 27 anos em Salvador. Nele só desfilam negros e sua ancestralidade é revivida, estimulada e re- criada esteticamente .
A entidade desenvolve o Projeto de Extensão Pedagógica que visa “introduzir nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio a cultura negra, a partir da música, do trançado dos cabelos e da indumentária produzida pelo bloco afro Ilê Aiyê” .(SILVA, 2001; p.18). Mantém a Escola de Percussão Banda Erê trabalhando, além da musicalidade, a oralização da cultura ancestral, educação corporal, a mulher brasileira, ecologia, teatro, formas de espiritualidade negra , preconceito e discriminação racial .
O movimento negro baiano conseguiu ainda , em 1983, a implantação da disciplina optativa Introdução aos Estudos Africanos na rede pública estadual (ensino fundamental e médio). Na ementa previa-se o estudo da “organização política da África pré-colonial, formação histórica e geográfica dos povos africanos antes da divisão da África, como se transmitia a educação através da linguagem oral, a formação dos tradicionalistas e dos griôs, responsáveis pela conservação da história dos povos entre outros assuntos ( SILVA, 2001;p.17). Foi praticada em oitos unidades escolares do Estado, estimulou a criação de um curso de especialização em Antropologia, História e Geografia em convênio entre a Universidade Federal da Bahia e Secretaria Estadual de Educação e Cultura. A experiência não teve segmento com a mudança de governo estadual.
A Arte educa
“ Na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, , em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.”[2]
A Arte educa pelo imaginar, descobrir possibilidades, conhecer os sentimentos ( de acordo com a cultura de cada grupo) , exprimir os mesmos em outras formas, ter projetos de transformação, pelo ultrapassar barreiras de comunicação com outros povos,vivenciar o mundo integralmente em cada época, vivenciar o que não é permitido na vida cotidiana. A arte cria sentido para a vida nas crianças através do processo das descobertas de percepções, experiências, sentimentos, integração, auto-expressão. Desenvolve ainda a capacidade de discriminar, escolher, de ter a crítica, de sentir o próprio eu em contato com obras de outros artistas.
A identificação, assim como o entendimento das manifestações culturais locais e regionais, abrem a possibilidade de estudos e experimentos sobre aspectos artísticos teóricos e práticos. A estética desenvolvida pelos grupos humanos específicos é refletida na arte e não está dissociada da sua realidade social e histórica.
O diálogo da escola com o modo de vida dos seus alunos permitirá a vivência e potencialização de outros contextos de aprendizagem. As manifestações dramático- religiosas, a música, capoeira as organizações carnavalescas ( afoxés, batucadas e blocos afro) , entre outros , são alguns elementos mediadores da reflexão sobre a identidade cultural do negro. O aprofundamento em uma ou mais linguagens artísticas pela ótica dessas expressões fará com que o arte-educando realize, questione, aprecie e debata, elabore e colabore com sua realidade.
A multirreferencialidade precisa ser praticada com a convivência com as diferenças, a busca de novos espaços de interação e afirmação das identidades. O contato com outras fontes de informação e saberes traz questionamentos sobre as certezas, enriquecendo o contexto do indivíduo, a vida. É nesse momento de interação que se dá a criação de entre-lugares : onde a subjetividade humana procura a e materialização de um mundo mais tolerante , justo e plural.

Formação de arte-educadores

Os cursos de formação de professores , onde se incluem os arte-educadores, ainda não avançaram no sentido de estudar a história ou expressões artísticas africanas e indígenas. A possibilidade da pesquisa no campo sobre essas questões durante a graduação, indicará caminhos para a preparação de docentes críticos, criativos e solidários. O material pesquisado poderá compor uma forma nova de material didático.
O professor deve se re-conhecer nesse espaço e opinar. Tem que decidir se é melhor inserir conteúdos afro-brasileiros nas suas práticas de ensino, ampliar sua própria leitura do mundo ou ministrar uma nova disciplina. Mas, sobretudo, lembrar que admitir a existência e identificar as práticas racistas no cotidiano escolar são passos para a prevenção da discriminação.
O educador precisa ter a percepção dos diversos modos de vida de seus alunos e respeitá-los . Para o professor de Arte, cabe ainda a missão de desmistificar o papel de atividade supérflua que a disciplina tem ocupado na escola , esclarecendo o valor de sua profissão e área de conhecimento. A Arte não deve ser limitada a ilustrar temas discussão, mas pode ser um meio de re-conhecimento e reflexão da identidade nacional. Utilizando-se de toda a sua extensão educativa , a Arte estará em prol da formação de um sujeito livre.
A escola, portanto, deve entender e receber a realidade local (incluindo a vida dos estudantes) como possibilidade de espaço de formação , aproveitando referências múltiplas, estimulando a vontade de saber mais , a identidade e a autonomia.Nesse caminho, o ato da repetição dará lugar ao ato da criação e re-criação de novos territórios para o conhecimento e ação do sujeito.
Se considerarmos os conhecimentos e saberes dos afrodescendentes em sala de aula perceberemos o quanto a cultura afro-brasileira está presente. Ouviremos vozes silenciadas há séculos e numa nova temporalidade criaremos outros caminhos para a Educação.
Referências:
BOAVENTURA, Edivaldo. O ensino da cultura afro – brasileira. Jornal A TARDE, 16.01.2003
BOAVENTURA, Edivaldo. A educação indígena. Jornal A TARDE, 23.01.2003
DUARTE JÚNIOR.Fundamentos estéticos da Educação.Campinas: Papirus, 1988
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 7-28
FUSARI, Maria F. R. e FERRAZ, Maria Heloísa. Arte na educação escolar.São Paulo:Cortez,1993
GOMES, Nilma Lino. A contribuição do negro para o pensamento educacional brasileiro In SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves ( org) . O pensamento negro em Educação no Brasil: expressões do movimento negro.p.27-28
GUIMARÃES, Elias Lins. A ação educativa do Ilê Aiyê: reafirmação de compromissos, restabelecimento de princípios. Salvador. Tese de Doutorado em Educação pela Faculdade de Educação/ UFBA, 2001
LIMA, Terezinha Bazé de. Pluralidade Cultural e combate à discriminação racial na escola. In Revista Palmares em Ação. Ano I, n.2., p. 30-33, Fundação Cultural Palmares , 2002
PORCHER, Luís (org). Educação Artística: luxo ou necessidade? São Paulo: Summus,
1982
SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo In SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 1995 , p.159-177
SERPA, Luiz Felippe P. Pedagogia

Fonte:http://www.rascunhodigital.faced.ufba.br/ver.php?idtexto=164

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